- Venho cá para o serviço completo! - Disparei de chofre depois de ter entrado e dado as boas tardes.
O som ficou a soar-me nos ouvidos como se as palavras não tivessem saído da minha boca.
Durante uma breve dentada do tempo o pêndulo do relógio saltou uma fracção de segundo, deixando-me para trás, espectador de mim mesmo, ouvindo a minha voz e apercebendo-me do valor da projecção do meu corpo no espaço.
Ela ficou a olhar para mim, esboçou um breve sorriso e continuou a arrumar as coisas em cima da bancada.
- Sente-se nesta cadeira... se fizer favor... - Respondeu-me após uma pausa, enquanto rodava na minha direcção e apontava com uma escova de cabelo, de olhar perdido na luz que entrava da rua e onde se desvanecera num instante breve o reflexo da última cliente da tarde.
Dei dois passos para o lado olhando para o espelho que alinhava agora a minha imagem com a dela, deixando-nos ligeiramente sobrepostos.
- Não é aqui que pretendo o serviço... É lá dentro.
De repente parou. Fez-se silêncio. Colocou-se numa postura de costas direitas e altivamente olhou-me nos olhos.
- Repete lá isso, rapaz?!
Engoli em seco, e repeti com a voz seca:
– Lá dentro... Quero que me ensine tudo...
Olhei bem para ela, num tom de desafio sem desviar o olhar.
Era uma mulher já bem entrada nos quarenta. De físico seco, linhas do rosto firmes e de uma beleza quase exótica. Olhos muito azuis a destacarem numa pele ligeiramente bronzeada que se fundia à altura dos ombros nas nuances claro-escuro de uns cabelos louros muito soltos e sonhadores.
Analisava-me com um olhar meio perdido. Dentro dela muita coisa estava a passar-se. Pousou a escova e dirigiu-se a mim. Olhou-me bem nos olhos, que não se desviaram. Depois, sem dizer-me nada, foi até à porta e fechou-a.
- Quem te falou em mim? - Voltou-se ela.
- Ninguém! - Menti-lhe eu. – Ando a observá-la há umas semanas...
Não me deixou dizer mais nada. Pegou-me na mão e empurrou a porta que ligava para o interior do salão de cabeleireira. Apertou-me as mãos a querer sentir-me a alma na força com eu que agarrava no aperto dela. Olhou-me bem nos olhos e aproximou o seu corpo ao meu, fazendo-me sentir um universo de cheiros e aromas de mulher misturadas com lacas, shampoos e perfumes.
- Andas a observar-me?! Mentes mal... Queres um tratamento completo, não
é? – E sem mais nada dizer tapou-me a boca com os lábios, mordendo-me levemente e massajando a língua no céu da minha boca, por entre os assaltos da minha aos alvos correspondentes dela.
- Humm. – Disse – Beijas com furor! Gosto disso... Vamos primeiro tomar um duche. Só alinho com homens muito bem lavados e cheirosos.
Nem me deixou dizer mais nada. Começou por desabotoar-me a camisa, botão a botão, muito lentamente, como tudo o que se aprende na vida e que permanece vivo para sempre.
Descobri com ela, para o resto do meu existir, a espiral de ser um aprendiz eternamente navegando no Universo infinito da primeira lição, entre águas e espumas num navio em permanente naufrágio num corpo de mulher...
(continua)
Charlie
23 de outubro de 2005
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