D. Leonor (1458-1525)
Rainha de Portugal nascida em 1458 e falecida em 1525. Prima e esposa de D. João II
Rainha de Portugal nascida em 1458 e falecida em 1525. Prima e esposa de D. João II
"Leonor... Lianor... Eleonora... Lianora... Alienora... Eulianor... Lenore... - Misericordiosa... Compassiva... " El-Nor ou !Allah nuur, ou "noor" (em árabe): "DEUS É A LUZ."
(Dr. Francisco J. Velozo)
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(Dr. Francisco J. Velozo)
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Aproximando-se das vidraças, D. Leonor olha para o céu estrelado e deixa-se levar pelos pensamentos que pertencem ao seu filho e esposo falecidos. Ao seu irmão e cunhado levados pela voracidade das traições palacianas, e na sua solidão.
Junto a si, a sua aia e confidente arruma diligentemente os aprumos e tecidos dos aposentos reservados à soberana...
- Oh! Estas estrelas. Este firmamento! Que estranhos arranjos nos céus descrevem nestas noites as voltas do meu destino. Tudo está escrito nas estrelas. Ai... e como vejo de repente gravada a forma como as intrigas e o
infortúnio levaram a minha felicidade aos poucos. Estou morta para a vida, o meu filho tragicamente falecido pela queda do cavalo. O meu esposo morto em vida, levado pelo desgosto, deixou-se finar abandonando-me a esta solidão... Estou rodeada de tragédia e eu mulher só e sem a força dum homem ao meu lado, sem a sua presença quente nas noites do meu corpo, que definha sob o segredo dos desejos e que amortalha o sentir no sublimar da caridade!
- Em que pensais, minha soberana, que vejo os vossos olhos tomados desses brilhos que são o resumo gotejante das tristezas da alma?
- Minha boa aia, confidente e amiga. Faz já três anos que se finou o meu marido em desgostos, e mais de oito que quis o destino trocar as voltas e fazer com que o meu filho jamais visse as lajes que haveriam de cobrir os meus restos mortais.
- Oh minha soberana, quanto me penitencia a vossa dor de mãe e esposa neste pesar que é de todo o Reino, mas cuidai que sois vós vista pelas gentes como Rainha dos sofredores? Não é o povo que vos apelida de Princesa Perfeitíssima com todas essas obras generosas que vós tomastes em mãos, e que por isso vos ama? A recente Misericórdia que tanto tem minorado as maleitas e sofrer dos desafortunados? E o que dizer do apoio às artes, a esse novo génio do nosso sentir, Gil Vicente, e a todos que são sabedores das letras e demais artes?
E a vossa obra primeira, o Hospital das Caldas? Acalmai o vosso pesar. O povo adora-vos...
- Ai amiga, que só vós para me despertar um sorrir agora. As Caldas... Acaso sabeis como surgiu esse Hospital? Vejo um ar de interrogação no vosso olhar. Dir-vos-ei. Essa zona então desabitada, era um reduto de rituais da água e de fertilidade ancestrais e pagãos. As mulheres e homens vinham de longe amenizar, entre outras maleitas, as infertilidades das suas entranhas envoltas em símbolos e objectos representativos dos prazeres das carnes.
Pernoitavam na vila de Óbidos, enquanto nos dias certos se entregavam às forças maiores em práticas e rituais semi-obscuros e vistas como diabólicos pelo Clero. Foi graças ao meu defunto esposo, acedendo ao meu pedido, quem tomou mãos e, pela força da coroa, impôs que dessem largas ao culto de forma cristã de forma a sedar o Clero, e que se fixassem, com toda a sorte de apoios, as populações junto ao edifício que mandei erguer no sítio das termas. Foi ainda na vila de Beja que me viu nascer que decidi tomar em mãos este desígnio, por ocasião dum estranho presente que me foi ofertado por um primo.
- A julgar pela forma como tem crescido o povoado, bem podereis assentar no êxito das vossas medidas, minha soberana.
- Não sei, minha boa amiga. Não sei se teriam sido as minhas iniciativas, ou se apenas fui a visão ajuizada que deu luz e dia ao que todos na noite da alma sentiam.
- Mas, minha Rainha, o que vos fez, nessa altura, tomar em mãos semelhante tarefa, estando vós ainda em idades plenas de verduras da carne e limpidez de espírito?
- Sorrio levemente, minha boa amiga... há todo um mundo dos sentidos que nos ferve no íntimo como as palavras brotam das bocas dos poetas sem que eles saibam explicar as nascentes da alma. Mantende em segredo para todo o sempre, minha aia e, sob juramento de silêncio, isto que vos entrego em confissão; a minha devoção a obras de caridade é tudo o que me é permitido como soberana no desejo profundo dum afecto inexplicável, que me rói a alma e que me consome. Vinde aqui junto a mim e vede o que eu guardo neste pequeno cofre cujo acesso vos está vedado. Bem sei da vossa cara de espanto mas isto que vós vedes foi a oferta do meu primo de que vos falei. Este objecto de culto, este falo feito dos barros que ladeiam as terras das Caldas termais, foi o que me fez deslocar lá na primeira ocasião, e sentir após um breve contacto com as águas como esse local me fez sentir mulher e o corpo em flor... Sim, minha amiga. O meu corpo de mulher queima em desejo. Mas o recato, a minha postura e dignidade, não me permitem amar de outra forma senão com a entrega às causas que abracei. Amo o meu povo nas obras que lhe dou, na aventura das artes, com a chama com que entregaria o meu corpo ao fervor dum amante. E será em campa rasa junto ao povo que devolverei o meu corpo ao barro de que ele é feito, tal como este falo, num último gesto de amor e entrega. É este o meu segredo, e agora também o vosso. Guardai-o com a vossa vida. Que jamais saia de entre nós o que vos confiei...
Charlie
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A D. Leonor deu-nos a honra de fazer o 69º comentário a este texto:
"Ah, Plebeus, que consumis as vossas existências nestes rodeios... mas como vos compreendo. Tanto que guardo e que teria para dizer-vos. Contentai-vos contudo com este breve vislumbre. O que sei é muito mais que podereis alguma vez saber, mas sem que saia uma palavra da minha boca, calar-me-ei feliz se algum mortal as desvendar e as revelar ao mundo..."