3 de janeiro de 2008

Legalizar as casas de passe: sim, não, talvez?

Sobre este assunto, recomendo a leitura do artigo de Fernanda Câncio para o Diário de Notícias.
Por ser uma área que mexe com muitas susceptibilidades e por merecer uma reflexão séria, transcrevo-o aqui na sua quase totalidade:
"As mulheres que se entregam à prostituição e fazem da prostituição um modo de vida designam-se por toleradas; são inscritas no respectivo registo policial - e ficam sujeitas a determinados preceitos de parcimónia e higiene que um serviço de inspecções condiciona e vigia (...) Todas as toleradas têm de possuir o chamado livrete sanitário que lhes servirá de título que determina a sua classe (...)"
Era assim a legislação portuguesa até 1962, altura em que foi proibida: as "toleradas" e as "casas de toleradas" eram legais, regulamentadas e alvo de inspecção sanitária periódica. Meio século depois, quando a prostituição é uma actividade "livre de regulamentação jurídica" há quem defenda o regresso a este figurino e promova para tal um "movimento cívico".
É o caso do advogado José António Pereira da Silva, que se propõe "financiar" um movimento "para proceder à recolha de assinaturas para apresentar uma petição à Assembleia da República no sentido de legislar no sentido de legalizar as 'casas de passe' e o exercício controlado da prostituição, erradicando, concomitantemente, a chamada 'prostituição de rua'". O fundamento desta reivindicação (...) será sobretudo "a salvaguarda da saúde pública, porque hoje permite-se a prostituição de rua sem o mínimo controlo sanitário. É um perigo porque pode ser um foco infeccioso. Essas pessoas têm de ser rastreadas." Mas o "decoro" será também uma razão: "Porque é que é pior na rua que em casa? Na rua elas estão menos protegidas. E é também uma questão de decoro, não tenho problema em usar a expressão decoro."
A ideia de regulamentar uma actividade que mantém no ordenamento jurídico português um estatuto de excepção - o de não ser nem legal nem ilegal, já que a lei só criminaliza o lenocínio, ou seja, o favorecimento e a exploração da prostituição, não qualificando o acto e o comércio propriamente ditos - enclausurando-a, suscita, desde logo, reservas legais e constitucionais. "A tendência de regulamentar no sentido de internalizar essa actividade pode levar a situações que fiquem muito perto do condicionamento drástico da liberdade das pessoas, que pode ser contrária à própria ordem constitucional - que é uma ordem constitucional de liberdade", opina Jorge Lacão, secretário de Estado da presidência do conselho de ministros e o membro do Governo que tutela a área da igualdade. Lacão não prevê para breve uma iniciativa legislativa do Governo em relação a esta matéria, apesar de reconhecer que já fez alguma apreciação do direito comparado e que o exemplo da Suécia, que desde 1999 criminaliza os clientes, serviu de referência para a alteração do Código Penal que resultou na criminalização de quem recorre à prostituição compulsiva.
Igualmente sensível à restrição da liberdade individual e avesso à ideia de "clausuras" é o bispo católico Januário Torgal Ferreira. "As pessoas não querem ser atiradas para casas fechadas, para ruas muradas, para jardins zoológicos; não me parece que o problema se resolva com grades, prisões, correctivos, enjaulamentos." Convidado para o debate organizado por Pereira da Silva, o clérigo, que não estará presente por motivos de agenda, apela a que "se oiçam as pessoas intervenientes. É um problema delicado e sobre ele ninguém sabe nada e seria interessante ter a aprender. Tudo isto me exige muita delicadeza e respeito quer pelas pessoas que foram constrangidas quer pelas outras que fizeram uma escolha. Não serei eu o messias para indicar o caminho. E é preciso respeitar a liberdade individual.Talvez as pessoas não queiram ser salvas dessa maneira, com regulamentações..."
Certa disso, de que quem se prostitui nada tem a ganhar com uma regulamentação da actividade, seja ela qual for - e regulamentar não significa necessariamente retirar a prostituição da rua e encerrá-la em bordéis, mas tornar legal, e portanto enquadrada, uma actividade comercial existente - está Inês Fontinha, a directora do Ninho, uma associação que se dedica à "recuperação e acolhimento" de mulheres que se prostituem. "A prostituição é um atentado aos direitos humanos e os atentados aos direitos humanos não devem ser legalizados". Apostada em "combater as causas", Fontinha vê o rastreio obrigatório como uma discriminação: "a prostituta é examinada e o cliente não?". Quanto às "casas de passe", classifica-as de "violência extrema, porque tudo se passa entre quatro paredes". Nesta visão da prostituição no feminino, como vitimização e "subalternização das mulheres" não cabe quem (mulher ou homem) escolha prostituir-se. "Se existirem pessoas que querem vender sexo, isso faz parte da vida privada. Por que há-de o estado legislar sobre a vida privada?", questiona Fontinha. O debate, portanto, continua - como aconselha Jorge Lacão: "É uma questão em aberto na sociedade, deve debater-se".

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